A expressão “Obras de Santa Engrácia” é bem conhecida dos portugueses e utilizada sempre que algo demora eternidades a ser concluído. Seja uma estrada que nunca mais fica pronta, um projeto que avança a passos lentos ou uma promessa adiada indefinidamente, esta frase encaixa-se perfeitamente em inúmeras situações do dia-a-dia.
Mas qual a sua origem? Para compreender a história por detrás desta curiosa expressão, é necessário recuar vários séculos e explorar um dos monumentos mais icónicos de Lisboa: a igreja de Santa Engrácia, hoje o Panteão Nacional.
A história começa no ano de 1568, quando se deu início à construção da igreja de Santa Engrácia, no bairro de Alfama, em Lisboa. Este templo religioso foi erguido para substituir uma antiga igreja dedicada à mesma santa, que tinha sido destruída por um temporal. No entanto, desde o início, o projeto enfrentou inúmeros desafios, que contribuíram para a sua fama de obra interminável.
Um dos principais obstáculos foi a falta de financiamento. Ao longo dos séculos, os sucessivos governos e mecenas não conseguiram garantir os fundos necessários para que os trabalhos prosseguissem a um ritmo constante. A instabilidade política do período teve também um papel determinante, com alterações no poder que levaram a sucessivas interrupções na construção.
Além disso, a igreja de Santa Engrácia foi palco de um dos episódios mais misteriosos da história lisboeta: a suposta profanação do templo no século XVII. Conta-se que um cristão-novo (judeu convertido ao cristianismo) foi acusado de roubar uma hóstia consagrada e, como castigo, condenado à fogueira.
Antes da execução, terá lançado uma maldição sobre a igreja, afirmando que a construção nunca estaria concluída. Esta lenda alimentou a crença popular de que o edifício estaria condenado a permanecer inacabado.
Em 1681, foi dado um novo impulso ao projeto, com a nomeação do arquiteto João Antunes, um dos maiores nomes do barroco português. O seu talento permitiu avançar com uma estrutura imponente, de planta centralizada e uma majestosa cúpula, mas a falta de recursos continuou a ser um entrave.
Durante décadas, o monumento manteve-se como um esqueleto arquitetónico, visível no skyline lisboeta, mas longe de estar concluído.
Perante tantos adiamentos, o povo de Lisboa começou a referir-se à construção da igreja como um exemplo de algo que nunca chegava ao fim. Assim nasceu a expressão “Obras de Santa Engrácia”, inicialmente utilizada para descrever a longa espera pela conclusão do templo, mas que rapidamente ganhou um significado mais abrangente.
Com o tempo, a frase tornou-se sinónimo de qualquer trabalho, projeto ou promessa que se arrastasse indefinidamente, sem conclusão à vista.
Curiosamente, a igreja só ficou oficialmente concluída em 1966, quase 400 anos depois da colocação da primeira pedra. O edifício, já sem a sua função original de templo religioso, foi convertido em Panteão Nacional, onde repousam algumas das mais importantes figuras da história e cultura portuguesas.
Atualmente, o Panteão Nacional é um dos grandes símbolos do património português. Para além da sua impressionante arquitetura, destaca-se como o local de repouso de personalidades ilustres, como Amália Rodrigues, Eusébio, Humberto Delgado e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Apesar da conclusão da obra, a expressão sobreviveu e continua a ser amplamente utilizada na linguagem quotidiana. É um exemplo fascinante de como a história pode influenciar a língua, dando origem a expressões que se mantêm vivas ao longo dos séculos.
Sempre que alguém menciona as “Obras de Santa Engrácia”, não está apenas a referir-se a uma demora sem fim – está, sem saber, a recordar uma parte da história de Portugal, marcada por desafios, lendas e a perseverança de gerações.