Isto pode parecer estranho, pois o Castelo de São Jorge é normalmente apresentado como uma antiga fortaleza medieval. No entanto, o que hoje se observa resultou de uma grande campanha de obras executada entre 1938 e 1940, durante o período do Estado Novo.
Antes desse esforço de reconstrução, o topo da colina era sobretudo ocupado por estruturas militares e ruínas pouco definidas, acumuladas ao longo dos séculos e marcadas por destruições sucessivas, sismos e alterações urbanas.
A intervenção que deu ao Castelo de São Jorge o aspeto que conhecemos não respeitou de forma rigorosa a traça original. Em vez disso, seguiu critérios ditados por motivações ideológicas do regime ditatorial da época, que pretendia evocar o passado glorioso da nação.
Recorde-se que estava em curso a celebração dos oito séculos da fundação de Portugal, e o objetivo era reforçar o orgulho nacional, criando símbolos capazes de exaltar o imaginário histórico e cultural português.
A Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) liderou os trabalhos. Na primeira fase das intervenções, expropriaram-se e demoliram-se edifícios construídos após o período manuelino, nomeadamente dos séculos XVII e XVIII.
Além disso, realizou-se uma enorme operação de desaterros e remoção de entulhos. Estima-se que cerca de metade da área da antiga freguesia do Castelo, incluindo áreas adjacentes, sobretudo a norte e a oeste das muralhas, tenha sofrido transformações profundas.
As escavações atingiram oito metros de profundidade nalguns pontos, removendo um total aproximado de 120.000 m³ de entulho. Esta ação alterou radicalmente o tecido urbano envolvente.
Numa segunda fase, as obras centraram-se no restauro e reconstituição do Castelejo ou Fortaleza. Houve intervenções em troços das muralhas da alcáçova, modificações nos pisos térreos dos antigos quartéis – outrora Paço da Alcáçova – e ainda a criação de um percurso exterior junto às muralhas a norte e a oeste.
Também se recompuseram ruínas, possivelmente do antigo Paço, eliminando construções mais recentes, de modo a recriar uma imagem idealizada daquilo que se imaginava ter sido o castelo medieval.
A reconstituição seguiu um método considerado radical para a época, visto que privilegiava a criação de um símbolo nacional em vez da preservação autêntica. O espírito que orientava a obra pretendia não apenas restaurar, mas também reinventar o monumento, conferindo-lhe um caráter exemplar.
Como sublinha Correia (2010, p.403), esta abordagem, fruto de um espírito ideológico, teve consequências devastadoras no que respeita à autenticidade histórica.
A norma adotada para o restauro, de acordo com Silva (1960a, p.382), baseou-se no aproveitamento de vestígios descobertos durante as demolições. Estes serviram de modelo para as partes que se queriam “recuperar” ou mesmo criar de raiz. O resultado foi uma espécie de composição ideal, seguindo referências vagas e imaginadas, como se tentasse consolidar uma visão romântica do castelo medieval português.
Foi assim que, por exemplo, se refez a torre do muro divisório interior “como se imaginou que seria primitivamente” (Silva, 1960a, p.385), bem como se desentaipou a porta de ligação aí existente.
No final, o Castelo de São Jorge ganhou uma forma coerente, mas baseada em reconstituições hipotéticas. Esta intervenção transformou-o num edifício profundamente marcado pela visão cultural da época sobre o castelo medieval português, atribuindo-lhe uma estrutura idealizada e intemporal. Como refere Santos (2011, p.184), o monumento resultante possivelmente nunca teria assumido aquele aspeto no passado.
Assim, o Castelo de São Jorge que hoje se visita não é apenas um vestígio do período medieval, mas também um produto do século XX. A sua imagem atual resulta de uma reconstrução que recorreu ao passado como inspiração, mas não se coibiu de inventar e adaptar formas para criar um símbolo nacional.
Dessa forma, o castelo não é apenas um monumento histórico: é também um testemunho das visões e intenções políticas que o moldaram em tempos mais recentes.