Entre os segredos e intrigas da corte portuguesa do século XVII, poucas figuras se destacam tanto pela inteligência mordaz e pela ousadia como Feliciana Maria de Milão.
Mulher culta e de espírito livre, encontrou no convento um refúgio que lhe permitiu escapar às amarras da sociedade patriarcal e fazer aquilo que mais desejava: escrever, pensar e, quem sabe, desafiar o poder com a sua afiada ironia.
A origem de Feliciana Maria de Milão continua envolta em especulação. Quando ingressou no Mosteiro de S. Dinis e S. Bernardo de Odivelas, aos 30 anos, em 1659, ocultou os nomes dos pais.
No entanto, algumas pistas sugerem que estaria ligada à alta nobreza de Aragão, o que tornava a sua presença ainda mais delicada num Portugal que lutava para consolidar a independência, recentemente recuperada do domínio espanhol.
O nome de Feliciana surge envolto em escândalo quando é apontada como amante do rei D. Afonso VI. A sua inteligência aguçada e a sua capacidade de seduzir não apenas pelo encanto, mas pela palavra, fizeram dela uma figura desconfortável para os aliados do monarca.
Conta-se que o rei, impressionado pela freira irreverente, chegou a protagonizar uma pega de touros em sua honra – da qual saiu ferido, necessitando de ser sangrado.
Mas Feliciana não era apenas uma mulher de espirituosa companhia. Ao longo dos anos, trocou correspondência com figuras de grande peso, como Catarina de Bragança, futura rainha de Inglaterra, e o influente Duque de Cadaval. Nas suas cartas e poemas, deixava transparecer uma mente brilhante, dominadora da palavra e destemida na crítica.
Se Feliciana tinha um dom, era o da palavra afiada. Os seus ditos espirituosos viajaram de boca em boca ao longo dos séculos, revelando uma perspicácia única e uma ousadia rara numa mulher do seu tempo.
Desdenhava atributos físicos e morais dos poderosos, brincava com os apelidos dos nobres e dos clérigos e não poupava sarcasmo nem mesmo quando falava do rei.
Num tempo em que as mulheres escritoras eram praticamente inexistentes fora dos mosteiros, Feliciana ousou desafiar esta realidade, sem nunca abdicar da sua própria identidade: nunca adotou um nome religioso, assinando sempre como Feliciana Maria de Milão.
Mesmo dentro do convento, Feliciana não passou despercebida. O seu nome aparece associado a outros homens, como Pedro de Quadros e F. Aranha, o que reforçou a sua fama de mulher de espírito indomável.
E, para alimentar ainda mais as especulações, em 1686 deu entrada no convento uma jovem de nome Teresa de Milão, cuja idade coincidia com a época em que Feliciana terá sido amante de D. Afonso VI. Seria a sua filha com o rei? Nunca se saberá ao certo.
Feliciana Maria de Milão morreu em 1706, mas até na morte deixou a sua marca. Terá desejado um epitáfio simples – “A pecadora” – mas as palavras gravadas na sua lápide encerram bem o seu espírito irreverente:
“Pedra, que um tesouro guardas
Na Singular Feliciana
Dize ao mundo que se engana
Que quem tudo foi é nada.”
Mulher que ousou ser livre num tempo em que isso parecia impossível, Feliciana Maria de Milão continua a ser um enigma. Mas, entre as lendas e as verdades, o que é inegável é o seu espírito indomável e a inteligência que a fizeram atravessar os séculos.
Será que Feliciana foi uma das primeiras feministas portuguesas? Ou apenas uma mulher que soube jogar as suas cartas num mundo dominado por homens? Talvez nunca o saibamos, mas uma coisa é certa: Feliciana Maria de Milão não foi uma freira qualquer.
Fonte: o sal da história