A milhares de quilómetros de Portugal, já do outro lado do mundo, existe um povo que fala, canta e sente em português, apesar de a presença lusitana não estar presente há séculos: os Kristang. Os portugueses chegaram há quinhentos anos a Malaca, na Malásia. Hoje, os seus descendentes ainda subsistem, num pequeno bairro piscatório malaio, onde se mantém a cultura e tradições portuguesas. Este povo, conhecido por ser cristão sobrevive desde o séc. XVI como uma pequena comunidade de cerca de 5000 pessoas.
Malaca foi conquistada há quinhentos anos por Afonso de Albuquerque, em 1511, e foi administrada por Portugal durante 130 anos, até que os holandeses aqui chegaram, em 1641. A comunidade portuguesa acabou por se refugiar na selva, fugindo da perseguição religiosa movida pelos holandeses. Por lá ficaram até à chegada dos ingleses, em 1805.
Os britânicos viram na comunidade portuguesa uma boa forma de ligação com os autóctones, já que falavam a mesma língua e estava inserida nos costumes locais. Assim, a comunidade portuguesa saiu da clandestinidade, mas não abdicou da sua identidade cultural.
Meio milénio após a chegada lusa e 370 anos após a partida, e apesar de nunca terem pisado solo português, todos os membros da sua comunidade se afirmam orgulhosamente portugueses. A cultura portuguesa transmite-se de pais para filhos, por via oral. Assim, as histórias e costumes ajudam a transmitir o “portugis antigo”, falado pelos primeiros colonos e corrompido por séculos de transmissão sem um único registo escrito. Aqui se canta o fado e dança o vira, numa alma portuguesa partilhada.
Ao percorrer aquelas ruas de casas baixas, com um pequeno jardim defronte, poderíamos deixar-nos enganar pelos chinelos à porta, costume malaio. Mas a presença de imagens religiosas, cruzes e crucifixos são símbolos desta comunidade e algo que os diferencia numa Malásia maioritariamente muçulmana, mas também hindu e budista.
Assim, o bairro português de Malaca é uma torre de babel lusitana, com descendentes diretos de navegadores, escravos, mercenários e portugueses de Goa, África do Sul, Macau ou Moçambique.
O bairro assistiu a uma considerável expansão nos anos 1960, altura em que mais famílias de origem portuguesa optaram por desenvolver o Kampung Portugis. Foram ficando por aqui e casando entre a comunidade. O bairro irá manter-se português, com o próprio governo malaio a legislar nesse sentido: as casas apenas podem ser vendidas a famílias portuguesas.
Assim, a toponímia não mudará, com a rua principal, D’Albuquerque, seguidas de Sequeira, Teixeira, Araújo, Eredia, e até do escritor Emmanuel Godinho Eredia, de quem foi publicada uma história de Malaca em 1615.
Apesar do distanciamento da nação que lhes deu as tradições, os Kristang preservaram a língua em casa, dançando o “Intrudu” (entrudo) antes da quaresma, honrando o “Senjuang” (São João) e o “San Pedro” (São Pedro) no Verão, e festejando o Natal em família como qualquer cidadão em Portugal. As festas dos portugueses de Malaca são tão famosas que a cidade malaia bate recordes de turismo nestas datas.
Longe de Portugal, mas com uma portugalidade que teima em se manter viva. Assim sobrevivem as nossas tradições na Comunidade Portuguesa de Malaca, agora confinada a um bairro, e com o desassossegado apelo de que os falantes de Kristang, a última variedade de crioulo português no Sudeste Asiático estão a diminuir, pelo que este nosso legado poderá um dia desaparecer.
Poema de Malaca
Keng teng fortuna ficah na Malaka, Nang kereh partih bai otru tera. Pra ki tudu jenti teng amizadi, Kontu partih logo ficah saudadi. Ó Malaka, tera di San Francisku, Nten otru tera ki yo kereh. Ó Malaka undi teng sempri fresku, Yo kereh ficah atih moreh.
Tradução em Português
Quem tem fortuna fica em Malaca, Não quer partir para outra terra. Por aqui toda a gente tem amizade, Quando partir logo fica a saudade. Ó Malaca, terra de São Francisco, Não há outra terra que eu quero. Ó Malaca, onde tem sempre ar fresco, Eu quero ficar até morrer.
À atenção da presidência da República para as celebrações do próximo 10 de Junho.
Quando em 2006 fiz uma visita a Malaca, prometi a mim mesmo lá voltar. Povo simpático e sobretudo orgulhoso por se considerarem “velhos portugueses”. Apesar de não falarem o “nosso” português, pelo menos cantavam-no perfeitamente. Estará, no entanto, disposto a desenvolver a Língua de Camões.
Um Povo patriota, com muitos anos de abandonado pelos governos de Portugal!
O meu abraço a todos os “velhos” compatriotas, portugueses de Malaca.
Seria de bom grado manter-se o contacto com essas comunidades para a expansão da nossa cultura. Não deixar morrer aquilo que existe há tantos anos…