É muito provável que nunca tenha ouvido falar dos Lamno, um povo de olhos azuis da Indonésia e que, diz-se, descendem de portugueses. Pode parecer algo estranha a referência aos olhos azuis, uma vez que esta cor de olhos até nem é muito comum em Portugal, com exceção de uma ou outra localidade mais a Norte do nosso país.
Mas a explicação está na genética. Afinal, bastava apenas que 2 ou 3 destes marinheiros portugueses tivessem olhos azuis. O tempo, juntamente com os casamentos entre pessoas da mesma comunidade, viria a originar esta população onde a cor de olhos azul é predominante.
Mas vamos à história. Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar à Indonésia, em inícios do século XVI, e, apesar de se terem estabelecido maioritariamente na região oriental deste país, alimentavam o sonho de controlar o comércio de pimenta desde o Norte de Samatra até ao mercado chinês, algo que lhes traria mais riqueza e poder.
No entanto, este projeto não se chegou a realizar, devido ao relacionamento conturbado com os sultões de Aceh antes da colonização holandesa. Aos períodos de paz sucedia-se a animosidade militar e política, o que deitou por terra os planos portugueses para esta zona. No entanto, os portugueses chegaram a erguer uma igreja, que é hoje conhecida como a Meca do país com mais muçulmanos do mundo.
Voltando aos Lamnos, o antigo diretor do Museu de Aceh, Nurdir Ar, explicou à Lusa que, de acordo com os costumes e tradições locais na altura da chegada dos portugueses, um barco naufragado e os seus respetivos passageiros passavam a pertencer ao sultão e à região, tornando-se achéns.
Assim, entre estes passageiros, talvez houvesse um conjunto de portugueses, que acabaram por ficar por terras indonésias, casando com mulheres locais e convertendo-se ao Islão, e que, com o tempo, deram origem a esta comunidade de olhos azuis.
Os portugueses da província de Aceh estão, no entanto, em risco de desaparecerem, especialmente desde que o tsunami de 2004 reduziu esta comunidade de centenas de pessoas a menos de uma dezena delas. Lamno, a localidade onde a maioria desta comunidade residia, ficou quase completamente destruída.
O bairro dos pescadores, situado no sopé de uma colina, hoje em dia tem apenas vestígios de uma ponte e de uma habitação, revelando a destruição deixada para trás nesta comunidade indonésia.
O antigo mercado de peixe, local onde os habitantes do bairro português se abasteciam, é hoje uma mistura de areia e de excrementos de búfalo em frente ao mar. 2004 marca, assim, o declínio desta comunidade.
Um dos sobreviventes a esta tragédia foi Jamaluddin, de 45 anos, que hoje faz parte de um grupo de quatro pessoas que são ainda conhecidos em Lamno como sendo de ascendência portuguesa, ou como “mata biru”, expressão que significa “olhos azuis”, apesar de Jamaluddin ter olhos castanhos. O tsunami roubou-lhe a esposa, também ela parte da comunidade portuguesa, e a filha.
O indonésio voltou a casar, desta vez com alguém de fora da comunidade de descendentes portugueses, e vive num bairro construído pela Arábia Saudita, numa região que é hoje multicultural graças aos vários países que participaram na reconstrução da zona do Aceh após o tsunami. Trabalha numa plantação de pimenta e tem gado a seu cargo.
Diz-nos ele que “os meus filhos têm a pele muito branca, cabelo castanho e as pessoas chamam-lhes “bule”, que é um termo local que significa “pessoa branca”, termo usado sem qualquer cunho pejorativo e que é de comum uso por indonésios que estão na presença de um caucasiano.
Isto acontece porque, tal como no período pré-tsunami, em que as pessoas com olhos azuis, cabelo louro e nariz pontiagudo chamavam a atenção, também Jamaluddin tem características distintivas dos homens do Aceh, como os braços peludos e o cabelo e olhos castanhos.
O seu filho, Rahmat Syah Putra, com 20 anos, não usa o cabelo tão comprido como o pai, mas segue-lhe o gosto por camisolas sem mangas, algo incomum na Indonésia.
Ambos sabem que têm ascendência portuguesa, mas sublinham que são iguais a quaisquer outros habitantes do Aceh, estando perfeitamente integrados na vida da comunidade, não tendo nenhuma tradição em particular que os distinga. Falam o dialeto da província e seguem a religião muçulmana, tal como os restantes habitantes locais.
Para Rahmat Syah Putra, o tsunami trouxe uma autêntica mudança da personalidade, no comportamento e em quem ele era no geral. Agora, o jovem está mais próximo de Deus e sonha tornar-se um líder religioso, confessando que, antes do desastre, nem sempre rezava cinco vezes por dia, como é exigido na religião muçulmana. Para este jovem, o tsunami não se tratou de um castigo, mas sim de um teste.
Este pequeno grupo de “mata biru” pode dar ainda continuidade à comunidade de ascendência portuguesa, havendo casos em que “a mãe é muito escura, mas o filho é muito branco”.
No entanto, a tendência é que a comunidade vã desparecendo gradualmente, situação que já se verificava antes do tsunami. Assim, é quase certo que, no futuro, os indonésios acabem por esquecer a ideia dos portugueses de Aceh ou “mata biru”.