Lisboa é uma cidade cheia de história e de memórias. Algumas delas estão preservadas nos monumentos, nos museus, nas ruas e nas pessoas. Outras, porém, foram desaparecendo com o tempo e as mudanças. Uma dessas memórias é a dos almanjarras, uns carros eléctricos abertos que circularam em Lisboa no início do século XX e que marcaram uma época.
Os almanjarras eram carros eléctricos abertos, com 12 bancos transversais, que podiam transportar até 60 passageiros. Eram fabricados em Filadélfia, nos Estados Unidos, pela empresa J. G. Brill, e tinham motores General Electric. Mediam 11,33 metros de comprimento e pesavam 11.380 quilos. Tinham dois ‘trolleys’, ou seja, dois cabos que ligavam os carros à rede eléctrica, para garantir a tracção nas subidas e descidas de Lisboa.
Foram comprados pela Companhia Carris de Ferro de Lisboa para renovar a sua frota de carros eléctricos, que até então eram mais pequenos e fechados. Os primeiros 10 almanjarras chegaram a Lisboa em Janeiro de 1902, num navio chamado Friede. No dia 10 de Março desse ano, chegaram mais 30, num total de 40 almanjarras que foram distribuídos por várias linhas da cidade.
O nome almanjarra vem de um peixe grande e escuro que se pescava no rio Tejo. Os lisboetas acharam que os carros eléctricos abertos se pareciam com esses peixes, tanto pelo tamanho como pela cor. Além disso, o nome tinha uma sonoridade engraçada e fácil de pronunciar.
O nome almanjarra também tinha um sentido pejorativo, pois era usado para designar pessoas grosseiras ou mal-educadas. Assim, os lisboetas expressavam o seu desagrado pelos carros eléctricos abertos, que consideravam feios, perigosos e inconvenientes.
Os almanjarras causaram uma grande impressão nos lisboetas, que não estavam habituados a ver carros tão grandes e abertos nas ruas da cidade. Alguns ficavam admirados e curiosos com a novidade, outros ficavam assustados e receosos com o seu aspecto e velocidade.
Eram vistos como uns monstros que podiam esmagar tudo à sua passagem. Os jornais da época relatavam vários acidentes envolvendo os almanjarras, como atropelamentos, choques com outros veículos ou quedas dos passageiros. O jornal Novidades chegou a escrever: “É uma aventesma formidável. Se abalroar com alguma coisa, acaba-se a coisa e acaba-se o mundo. Fica tudo num figo.”
Os almanjarras também eram criticados por serem desconfortáveis e impróprios para o clima de Lisboa. No verão, os passageiros sofriam com o calor e o sol; no inverno, com o frio e a chuva. Além disso, faziam muito barulho e levantavam muito pó, o que incomodava os transeuntes e os moradores.
Circulavam por várias linhas da cidade, como a 15 (Belém-Cais do Sodré), a 18 (Cais do Sodré-Santos), a 24 (Campo de Ourique-Cais do Sodré), a 25 (Campo de Ourique-Rossio), a 28 (Graça-Martim Moniz) e a 31 (Estrela-Campo Grande). Também faziam parte da linha circular, que ligava o Cais do Sodré ao Rossio, passando pela Avenida da Liberdade e pelo Marquês de Pombal.
Eram especialmente úteis para subir e descer as colinas de Lisboa, graças aos seus motores potentes e aos seus dois ‘trolleys’. No entanto, também tinham dificuldades em fazer algumas curvas apertadas, como as da Calçada do Combro ou da Rua da Bica. Por isso, às vezes era preciso que os passageiros saíssem dos carros e empurrassem-nos para ajudar na manobra.
Os almanjarras deixaram de circular em Lisboa na década de 1930, quando foram substituídos por carros eléctricos mais modernos e confortáveis. Alguns deles foram vendidos para outras cidades, como Coimbra, Porto e Funchal, onde continuaram a funcionar até aos anos 60. Outros foram desmantelados ou transformados em carros fechados.
Hoje em dia, só resta um almanjarra em Lisboa, que está exposto no Museu da Carris, junto com outros veículos históricos da companhia. O almanjarra é o número 283, o primeiro da série, que chegou a Lisboa em Janeiro de 1902. O almanjarra está restaurado e pintado com as cores originais: verde escuro e amarelo.
Curiosidades sobre os almanjarras
- Os almanjarras tinham um condutor e um cobrador, que se sentavam nos extremos do carro. O condutor era responsável por acelerar, travar e mudar os ‘trolleys’. O cobrador era responsável por cobrar os bilhetes e dar o sinal de partida.
- Os bilhetes eram de cartão e tinham várias cores, conforme o percurso e o preço. Os passageiros tinham que guardar os bilhetes até ao fim da viagem, pois podiam ser fiscalizados pelos revisores.
- Os almanjarras tinham uma campainha eléctrica que tocava para avisar os peões e os outros veículos da sua aproximação. A campainha tinha um som agudo e estridente, que era chamado de “pito” ou “apito”.
- Eram frequentemente usados pelos estudantes das escolas secundárias e universitárias, que aproveitavam as viagens para conversar, namorar ou fazer partidas. Os estudantes também costumavam saltar dos almanjarras em andamento, para poupar o bilhete ou para fugir aos revisores.
- Também eram usados pelos artistas e intelectuais da época, que se encontravam nos cafés e nos teatros do Chiado e do Rossio. Alguns deles escreveram poemas ou crónicas inspirados nos almanjarras, como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro ou Alfredo Pimenta.