Durante décadas, existiram nas periferias de Lisboa e do Porto os chamados “bairros de lata”, que as autoridades tudo fizeram para demolir. Por muito esforço por parte da população portuguesa, que contribuiu com os seus impostos na construção de habitações dignas, estes bairros foram desaparecendo. No entanto, à medida que algumas pessoas eram realojadas, outras apareciam, vindas do PALOP, e construíam novos bairros de lata.
E, apesar de termos a tendência de acharmos que este fenómeno era algo longínquo, a verdade é que, nos últimos tempos, fomos surpreendidos de novo com esta realidade, existindo ainda bairros de lata em concelhos como a Amadora, Almada e Seixal.
Mas vamos à história. Em fins do século XIX, começaram-se a ouvir algumas vozes contra as condições degradantes da habitação, especialmente nos grandes centros urbanos. Políticos como Augusto Fuschini e higienistas como Ricardo Jorge denunciavam na imprensa e no Parlamento as condições miseráveis em locais como Lisboa e o Porto.
A verdade é que, com o processo de industrialização destas duas cidades, as vagas de famílias rurais tinham engrossado a população citadina, com o mercado de arrendamento tradicional a não conseguir dar vazão à procura. Os bairros mais populares, como Alfama e o Barredo, ficaram rapidamente sobrepovoados, com os novos habitantes a terem de encontrar alojamento em condições improvisadas.
Mas, em breve, e graças a construtores oportunistas, surgiu um novo mercado de arrendamento, com módulos de habitação precários, com dimensões ínfimas e más condições de higiene, que ocupavam terrenos vagos no interior de quarteirões. Na altura, esta era a situação denunciada, não existindo ainda autênticos bairros de lata no sentido que lhe damos agora, mas sim algumas construções esparsas.
O Estado, às costas com défices crónicos no orçamento, demorava a intervir, com a situação a agravar-se cada vez mais, apesar das iniciativas de caráter filantrópico que eram lançadas nas duas cidades.
Foi preciso esperar até 1918, quando surgiram no consulado de Sidónio Pais as primeiras medidas estatais de proteção e apoio à construção de habitações económicas. Logo no ano seguinte, são lançados os primeiros “Bairros Sociais” em Lisboa, que, no entanto, demoraram mais de uma década a ficarem prontos. Com o advento do Estado Novo, esta preocupação com a habitação tem um novo impulso e, em 1933, cria-se o regime das “casas económicas”, que pretendiam reproduzir a estruturas das aldeias dentro das cidades.
Em 1938, pela mão de Duarte Pacheco, o combate aos bairros de lata na capital é assumido diretamente, através do regime das “Casas Desmontáveis”, feitas com chapas de fibro-cimento e que deveriam durar 10 anos, servindo como alojamento temporário.
Apesar disso, ainda subsistem muitos destes núcleos, mesmo passado meio século. Foi desta forma que se fez desaparecer o célebre Bairro das Minhocas, acreditando-se que o fenómeno das barracas era controlável a prazo.
Mas o fenómeno continuava forte. Em 1945, criam-se as “Casas para Famílias Pobres”, uma vez que os habitantes das barracas já não podiam aceder às “Casas Económicas”. Foram surgindo outras iniciativas ao longo da década de 40, não com o objetivo de eliminar as barracas, mas sim de acudir a outros estratos sociais um pouco por todo o país, até porque o problema da habitação se agravava.
É preciso esperar por 1956 para ver surgir uma ação de combate às chamadas ilhas, no Porto: um programa de construção de 6.000 habitações no prazo de 10 anos, destinados aos moradores dessas ilhas. Apesar das construções, as ilhas continuaram a existir na cidade e, em Lisboa, surgiram novos bairros de lata.
Em 1959, por decreto do Ministério da Presidência, é criado um Gabinete Técnico de Habitação na CML, lançando um programa específico de habitação social em termos integrados. É deste programa que resultam os bairros de Olivais Norte e Sul, assim como Chelas. Surge também o Viso, no Porto. É nestes bairros que o regime se vê obrigado a desistir da ideia da casa unifamiliar para o regime das “Casas Económicas”.
Infelizmente, o fenómeno era já alarmante. Em 1963, o Diário Popular realizou um inquérito exaustivo à questão da habitação, com as conclusões a serem organizadas em 19 artigos a publicar no jornal. No título, dizia-se que o número de barracas em Portugal passaria de 10 mil, em 1959, para 50 mil, em 1963.
Tendo em conta o número médio de pessoas por família nos anos 60 do século XX, o total de pessoas a viver em barracas poderia oscilar entre as 200 mil e as 300 mil. Escusado será dizer que os restantes artigos foram fortemente cortados pela censura, ocultando assim a realidade do próprio país aos cidadãos.
E, no entanto, a década de 60 foi o palco de dois importantes fenómenos, que serviram de válvulas de escape na multiplicação das barracas. Primeiro, foi a emigração massiva para a Europa, que absorvia os fluxos populacionais que normalmente se dirigiriam para Lisboa ou para o Porto. Depois, a proliferação dos chamados bairros clandestinos fez desviar dos bairros de lata aqueles que tinham alguma possibilidade de investimento.
Durante o marcelismo, foram lançados os “Planos Integrados”, que pretendiam estender o exemplo dos Olivais, mas pouco ou nada se avançou. A Censura, agora chamada de Exame Prévio, também continuava a impedir que os aspetos sociais da questão fossem debatidos.
Com o 25 de abril, surgiu um processo histórico: o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL), que tornou possível prever o desaparecimento das barracas e ilhas. Os habitantes dos bairros degradados organizaram Comissões de Moradores e, com o apoio estatal, organizaram-se muitas dezenas de equipas técnicas que se encarregavam dos projetos das casas. As Câmaras Municipais, por sua vez, disponibilizavam os terrenos necessários.
Muitos destes projetos iniciaram a sua construção, mas a grande maioria não conseguiu atingir essa fase. Isto porque, em 1976, o SAAL foi considerado demasiado revolucionário face ao sistema representativo, por ter na sua base formas de democracia direta.
Todas estas décadas passadas, o nível de vida das populações subiu, mas nem por isso as barracas e ilhas viram o seu número reduzido. As que são eliminadas pelos programas de habitação social são muitas vezes substituídas por outras, continuando bem evidente este problema estrutural na nossa sociedade.
Apesar de, ao longo dos últimos anos, a capacidade de realização de alguns municípios ter desenvolvido programas de habitação, a situação não dá mostras de melhorar, algo gravado pelo fenómeno da vaga da imigração dos PALOP.
Permanece como uma questão de fundo o enorme fosso entre os valores que são pedidos pelo mercado e as possibilidades económicas de todo um vasto setor da nossa população. Tal como acontecia há 100 anos, é evidente que apenas uma forte intervenção da Administração Central poderá dar habitações decentes a quem delas precisa.
Apenas restam poucos bairros degradados no nosso país, a maioria deles na periferia de Lisboa. Resta saber se será desta que as barracas vão acabar – e isto sem esquecer que o problema da habitação não se esgota nas questões das barracas.