Antes dos modernos elétricos se tornarem um símbolo de Lisboa, houve um outro tipo de transporte que despertou atenção e polémica: os almanjarras. Introduzidos no início do século XX, estes carros eléctricos abertos trouxeram uma nova dinâmica à mobilidade da cidade, mas nem todos os lisboetas os receberam de braços abertos.
Os almanjarras chegaram a Lisboa em 1902, adquiridos pela Companhia Carris de Ferro de Lisboa para modernizar a frota. Fabricados nos Estados Unidos pela J. G. Brill, estes eléctricos mediam mais de 11 metros de comprimento, tinham motores General Electric e pesavam mais de 11 toneladas.
A principal diferença em relação aos modelos anteriores era o facto de serem completamente abertos, com 12 bancos transversais e capacidade para até 60 passageiros.
A introdução destes automóveis transformou a experiência de viajar em Lisboa. Com o seu sistema de tração eléctrica e dois ‘trolleys’ para garantir energia constante, os almanjarras eram ideais para enfrentar as colinas da cidade. Foram distribuídos por várias linhas, incluindo percursos icónicos como Belém-Cais do Sodré e Graça-Martim Moniz.
O nome “almanjarra” teve origem num peixe grande e escuro pescado no Tejo. Os lisboetas acharam que os novos eléctricos se assemelhavam ao peixe, tanto pelo tamanho como pela cor.
No entanto, a palavra tinha também uma conotação menos elogiosa, sendo utilizada para descrever pessoas grosseiras ou rudes. Isto refletia a resistência de parte da população à novidade.
Embora inovadores, os almanjarras não foram bem recebidos por todos. Alguns lisboetas viam-nos como um perigo devido ao seu tamanho e velocidade. A imprensa da época chegou a descrevê-los como “monstros” capazes de causar grandes estragos em caso de colisão. Os jornais noticiaram vários acidentes, incluindo atropelamentos e quedas de passageiros.
Além disso, os almanjarras eram desconfortáveis para o clima de Lisboa. No verão, o sol tornava a viagem desagradável, enquanto no inverno a chuva e o frio eram um problema. O barulho excessivo e o pó que levantavam ao circular também geravam queixas por parte dos moradores e transeuntes.
Outro desafio era a manobrabilidade. Embora fossem suficientemente potentes para enfrentar as colinas de Lisboa, tinham dificuldades em curvas apertadas. Em algumas situações, os passageiros tinham de sair e empurrar os carros para completar determinadas manobras, como na Calçada do Combro ou na Rua da Bica.
Com o avanço da tecnologia e a necessidade de um sistema de transporte mais eficiente, os almanjarras foram retirados de circulação na década de 1930. Foram substituídos por eléctricos mais modernos e fechados, que ofereciam mais conforto e segurança.
Alguns dos antigos automóveis foram vendidos para outras cidades portuguesas, como o Porto, Coimbra e Funchal, onde continuaram a operar até aos anos 60. Outros foram desmantelados ou convertidos para modelos fechados.
Hoje, resta apenas um exemplar deste eléctrico em Lisboa. O almanjarra número 283, o primeiro da sua série, está exposto no Museu da Carris, preservado com as suas cores originais: verde escuro e amarelo.
Apesar das críticas, os almanjarras marcaram uma geração e passaram a fazer parte do quotidiano da cidade. Os bilhetes eram feitos de cartão e tinham diferentes cores consoante o percurso e o preço, sendo frequentemente fiscalizados por revisores. A sua campainha eléctrica, conhecida por “pito”, emitia um som agudo e estridente que anunciava a sua chegada.
Os estudantes eram passageiros frequentes e aproveitavam as viagens para conversar, namorar ou até pregar partidas. Alguns chegavam a saltar dos eléctricos em andamento para poupar no bilhete ou escapar aos revisores.
Os almanjarras eram também usados por artistas e intelectuais, entre os quais Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, que se inspiraram neles nas suas crónicas e poemas.
Embora os almanjarras tenham desaparecido das ruas, a sua história continua a ser um testemunho do desenvolvimento dos transportes em Lisboa. Representam um período de transição na cidade, quando a modernização e o progresso desafiaram os costumes e as expectativas da população.
Hoje, resta apenas a memória destes eléctricos abertos, perpetuada no Museu da Carris e nas recordações dos mais velhos.