Imagine que está a passear pelas ruas do Chiado e, de repente, vê uma vaca. Não num mural de arte urbana ou num anúncio a produtos biológicos, mas uma vaca verdadeira, a deambular calmamente pelo centro de Lisboa.
Agora imagine que essa mesma vaca pára ao seu lado, é mungida ali mesmo, e servem-lhe um copo de leite fresco. Parece um delírio? Pois bem, em 1887, esta cena fazia parte do dia-a-dia lisboeta.
No final do século XIX, Lisboa tinha cerca de 200 vacarias urbanas espalhadas por ruas movimentadas como o Crucifixo, São Paulo, Trindade e até São Bento. Sim, mesmo ao lado da atual Assembleia da República!
Ao todo, quatro mil vacas viviam e “trabalhavam” na cidade, competindo com as cabras, estas veteranas do abastecimento lácteo que já faziam parte dos hábitos alimentares portugueses.
Nesta época, o leite não era propriamente a bebida de eleição dos portugueses. Entre um copo de leite e um copo de vinho, a raia-miúda inclinava-se mais para o segundo.
Mas o hábito foi-se impondo, e as vacas passaram a fazer parte da rotina urbana. Em algumas ruas, os seus donos mungiam-nas à porta dos clientes, servindo leite diretamente no copo. Higiénico? Bem, eram outros tempos…
Foi por esta altura que a vaca Frísia, aquela que hoje associamos ao leite — branca com manchas negras — começou a destacar-se. Batizada em Portugal como Turina, esta vaca era um verdadeiro Ferrari da produção leiteira na sua terra natal, a Holanda.
Mas por cá, teve de se adaptar. Numa terra onde cada animal precisava de ser polivalente, a Turina não se destacava nem pela força de trabalho nem pela qualidade da carne.
O seu leite, menos gordo, não ajudava muito à produção de manteiga e era menos rentável para quem tinha o mau hábito de o adulterar com água. Foi uma longa caminhada até esta raça conquistar o seu estatuto de rainha do leite.
Se tudo isto lhe soa ligeiramente caótico, imagine o cheiro… Não foi, por isso, uma surpresa quando, em 1920, as autoridades decidiram acabar com as vacarias urbanas e proibir a circulação de gado pela cidade.
Lisboa modernizava-se, a higiene pública ganhava importância e a ideia de partilhar as ruas com vacas em horário de expediente já não parecia assim tão agradável. As vacarias deram lugar a leitarias, e o leite passou a chegar de forma mais discreta às casas lisboetas.
O leite pode ter ganho o seu espaço na alimentação dos portugueses, mas produtos como o iogurte ainda demoraram anos a conquistar os consumidores. Afinal, num país onde o vinho sempre foi rei, a ideia de beber leite parecia, para muitos, um luxo desnecessário.
Hoje, ao passearmos por Lisboa, poucas pistas restam desta era em que as vacas tinham tanto direito à cidade como os seus habitantes.
Mas se por acaso algum dia encontrar um café chamado “A Leitaria”, lembre-se que pode estar num dos locais onde, em tempos, o leite vinha diretamente da fonte — e não, não estamos a falar de um pacote do supermercado.
Fonte: o sal da história