O Sacramental é um livro impressionante por vários motivos. É o livro impresso mais antigo da língua portuguesa, o primeiro a ser impresso em Portugal e um dos mais lidos na Península Ibérica durante o século XV. Mas também é um livro perseguido pela Inquisição, queimado e censurado por conter ideias consideradas heréticas. E ainda é um livro fascinante por nos mostrar como era a vida quotidiana dos homens e mulheres medievais, os seus costumes, crenças, valores e dilemas.
Trata-se de uma obra pastoral escrita pelo clérigo leonês Clemente Sánchez de Vercial entre 1421 e 1425 em língua castelhana. O seu objetivo era orientar os sacerdotes na administração dos sacramentos e na confissão dos fiéis, fornecendo-lhes exemplos morais e histórias edificantes. É esta versão castelhana que foi traduzida mais tarde para português e deu origem ao primeiro livro impresso na língua de Camões.
O livro está dividido em sete partes, correspondentes aos sete sacramentos da Igreja Católica: batismo, confirmação, eucaristia, penitência, extrema-unção, ordem e matrimónio. Cada parte contém uma introdução teórica sobre o sacramento em questão, seguida de uma série de perguntas e respostas que os sacerdotes deviam fazer aos penitentes para avaliar os seus pecados e dar-lhes a penitência adequada.
O Sacramental não é apenas um manual de instruções religiosas. É também uma fonte de informação sobre a sociedade medieval portuguesa, pois aborda temas como a alimentação, as relações familiares, as relações sociais, a relação com Deus, o trabalho, o descanso, a saúde, a doença e a sexualidade. O autor usa uma linguagem simples e coloquial, recorrendo a provérbios, ditados, anedotas e fábulas para ilustrar os seus ensinamentos.
Clemente Sánchez de Vercial foi um autor influente na sua época, mas também controverso. Algumas das suas ideias foram consideradas heréticas pela Inquisição, que proibiu e queimou as suas obras no século XVI. Por exemplo, ele defendia que os judeus e os muçulmanos podiam ser salvos se seguissem a lei natural; que os pecados contra a natureza eram menos graves do que os pecados contra Deus; e que as mulheres podiam ter um papel ativo na sociedade.
Como foi impresso o Sacramental?
O Sacramental foi um dos livros mais impressos na Península Ibérica desde a introdução da imprensa até meados do século XVI. Conhecem-se treze edições em castelhano, uma em catalão e quatro em português. Das edições em português, duas foram impressas no século XV (Chaves, 1488 (?); e Braga (?), ca. 1494-1500) e duas no século XVI (Lisboa, 1502; e Braga, 1539).
A edição de Chaves é a mais antiga e a mais misteriosa. Não se sabe ao certo quem foi o seu impressor nem a sua data exata. Alguns estudiosos atribuem-na a Rodrigo de Eixea, que teria trabalhado em Chaves antes de se mudar para Braga. Outros sugerem que foi obra de um impressor desconhecido que teria usado tipos móveis trazidos de Sevilha ou de Oviedo. A data provável é 1488 ou 1489, pois o livro contém uma dedicatória ao rei D. João II, que morreu em 1495.
A edição de Braga é a mais incompleta mas encontra-se melhor conservada. Foi impressa por Rodrigo de Eixea por volta de 1494-1500. Tem 184 folhas em papel e está encadernada em pergaminho. Contém o texto integral do Sacramental, mas sem a dedicatória ao rei nem o prólogo do tradutor.
As edições de Lisboa e de Braga do século XVI são as mais tardias e as mais raras. Foram impressas por Valentim Fernandes e João Álvares respectivamente. Ambas foram proibidas e queimadas pela Inquisição por conterem ideias consideradas heréticas. Apenas se conhecem alguns fragmentos destas edições.
Estas quatro edições em português mostram-nos a evolução da língua portuguesa ao longo do século XV e XVI. Podemos observar as diferenças ortográficas, gramaticais e lexicais entre elas.
Por exemplo, na edição de Chaves encontramos palavras como “sagramento”, “santiguo” ou “feyto”. Na edição de Braga encontramos “sacramento”, “santigo” ou “feito”. Na edição de Lisboa encontramos “sacramêto”, “sãtigo” ou “feyto”. Na edição de Braga do século XVI encontramos “sacramento”, “santiago” ou “feito”.
Como podemos ler o Sacramental hoje?
Apesar de ter sido um livro muito popular na sua época, o Sacramental tornou-se raro e difícil de encontrar devido à perseguição da Inquisição e ao desgaste do tempo. Dos quatro exemplares impressos em português, apenas dois sobrevivem: um na Biblioteca Nacional de Portugal e outro na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Ambos estão digitalizados e podem ser consultados online.
O exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal é o mais antigo e completo. Foi impresso em Chaves em 1488 (ou talvez em 1489) por um impressor desconhecido. Tem 240 folhas em papel e está encadernado em pele. Contém uma dedicatória ao rei D. João II e um prólogo do tradutor português, que se identifica como João Gomes de Lisboa.
O exemplar da Biblioteca Pública Municipal do Porto é mais recente e incompleto. Foi impresso em Braga por volta de 1494-1500 por Rodrigo de Eixea. Tem 184 folhas em papel e está encadernado em pergaminho. Falta-lhe a dedicatória ao rei e o prólogo do tradutor, bem como algumas folhas no início e no fim.
Além destes dois exemplares impressos em português, existem também várias cópias manuscritas do Sacramental em castelhano e em catalão, que podem ser encontradas em diferentes bibliotecas e arquivos da Europa.
Por que é que o Sacramental é importante para a cultura portuguesa?
O Sacramental é um livro importante para a cultura portuguesa por vários motivos. Em primeiro lugar, é um marco histórico da língua portuguesa, pois é o livro impresso mais antigo nesta língua e o primeiro a ser impresso em Portugal. É também um testemunho da influência cultural de Castela sobre Portugal no século XV, pois é uma tradução de uma obra castelhana.
Em segundo lugar, é um documento valioso para o estudo da sociedade medieval portuguesa, pois revela-nos aspetos da vida quotidiana dos homens e mulheres dessa época, os seus costumes, crenças, valores e dilemas. É também uma fonte de informação sobre a história da Igreja Católica em Portugal, pois mostra-nos como era a prática dos sacramentos e a confissão dos fiéis.
Em terceiro lugar, é uma obra literária interessante pela sua forma e pelo seu conteúdo. É uma obra didática e moralizante, mas também divertida e variada. Contém exemplos morais e histórias edificantes tiradas da Bíblia, dos santos e da literatura clássica e medieval. Usa uma linguagem simples e coloquial, recorrendo a provérbios, ditados, anedotas e fábulas para ilustrar os seus ensinamentos.