Já alguma vez ouviu falar das siglas poveiras? Tratam-se de uma proto-escrita primitiva, um sistema de comunicação visual que foi usado durante muitos séculos na Póvoa do Varzim, especialmente nas classes piscatórias. Eram escritas sobre madeira, usando-se uma navalha para fazer a inscrição, mas podiam ser igualmente pintadas em barcos ou barracos de praia. Foram usados para recordar coisas, no passado, e, apesar de ser conhecida como “escrita” poveira, não constituía um alfabeto em si.
Eram usadas porque muitos pescadores desconheciam o alfabeto latino, e assim as runas adquiriram bastante utilidade. Mas como? Por exemplo, eram usadas pelos vendedores, no seu livro de conta fiada, e lidas e reconhecidas como nós reconhecemos um nome escrito no nosso alfabeto. Por sua vez, o valor em dinheiro era simbolizado por rodelas e riscos, que designavam os vinténs e os tostões, e que eram desenhados após o nome do indivíduo.
Outro uso comum era no peixe: o peixe apanhado na rede pertencia ao seu proprietário, e por isso os peixes eram marcados com sigla e entregues às mulheres dos donos da rede. Estes golpes eram feitos em diversos pontos do peixe. A tripulação de cada barco tinha igualmente uma sigla, usada por todos os tripulantes. Caso alguém mudasse de barco, mudaria também a sigla e passaria a usar a da nova embarcação.
As siglas entraram em uso na Póvoa de Varzim graças à colonização viking, entre os séculos IX e X, tendo permanecido na comunidade graças à endogamia e à proteção cultural por parte da população. Dessa forma, manteve-se presente esta herança da passagem dos vikings pelas nossas terras.
Aliás, as marcas poveiras foram usadas como brasão ou assinatura familiar, de modo a assinalar os seus pertences, um costume que também existiu na Escandinávia, onde estas marcas eram chamadas de “bomärken”.
As siglas, enquanto brasões de família hereditários, são transmitidos por herança, de pais para filhos, podendo apenas ser usadas pelos herdeiros. O pai passava a sua sigla para o filho mais novo, e aos outros filhos era dada essa sigla, mas com traços, chamados “pique”.
Portanto, o filho mais velho tinha um pique, o seguinte tinha dois, e assim por diante, até chegar ao filho mais novo, que não teria nenhum pique, herdando a mesma sigla que o pai. Isto porque, na tradição poveira, o herdeiro da família é o filho mais novo (algo que acontecia na antiga Bretanha e Dinamarca), porque seria esse filho o responsável por tomar conta dos pais quando estes se tornassem idosos.
Estas siglas poveiras foram estudadas, pela primeira vez, por António dos Santos Graça, no seu livro “Epopeia dos Humildes”, de 1952, que tem centenas de siglas e a história e tragédia marítimas poveiras. As siglas ainda podem ser encontradas em templos religiosos, não só na cidade e no concelho, mas também no noroeste peninsular, em especial no Minho e na Galiza.
Os templos religiosos são, portanto, um bom local de estudo das siglas, já que os poveiros costumavam gravar, nas portas de capelas ou montes, a sua marca, como um documento da sua passagem por ali. Isto pode ser visto em locais como a Nossa Senhora da Bonança, em Esposende, em Santa Trega (Santa Tecla) ou no monte junto a La Guardia, em Espanha. Outros locais onde se podem ver siglas poveiras são os templos da Senhora da Abadia, de São Bento da Porta Aberta, de São Torcato, e da Senhora da Guia.
No concelho, as siglas são encontradas em especial na Igreja Matriz (desde 1757), mas também na Igreja da Lapa e na Capela de Santa Cruz, em Balasar. Um objeto que seria de grande importância para o estudo destas siglas, a mesa da sacristia da antiga Igreja da Misericórdia, guardava milhares de siglas, uma vez que os poveiros as escreviam quando se casavam, como forma de registar o evento.
Infelizmente, esta mesa foi destruída quando a igreja foi demolida, perdendo-se assim uma fonte pormenorizada que poderia servir para melhor compreender estas marcas.
A 23 de setembro de 1991, inaugura-se, durante as festividades de Santa Trega, uma escultura que honra as siglas poveiras, lembrando a antiga porta, coberta de siglas, da capela de Santa Trega.
Com esta inauguração, veio da Póvoa de Varzim uma expedição, a bordo da lancha “Fé em Deus”, cujos pescadores subiram ao Trega e oraram na ermida dedicada à padroeira do Monte, seguindo antigos rituais, em que os pescadores iam ao monte rezar à santa para mudar os ventos, de maneira a poderem regressar a casa.
Isto demonstra um orgulho e uma vontade da população de manter vivas as tradições ancestrais, e a verdade é que, apesar de já não terem o uso de outrora, as siglas ainda são usadas em barracões e nos pertences de algumas famílias típicas. A Casa dos Pescadores da Póvoa de Varzim também aceita as siglas como forma correta de assinatura.
Infelizmente, não há uma política de salvaguarda desta preciosa herança por parte do município, e, com a reestruturação dos barracões, muitas das siglas dos concessionários acabaram por desaparecer das praias.